SEM PERDÃO NÃO EXISTE AMANHÃ
Alguém já disse que a família é o lugar dos maiores amores e dos
maiores ódios. Compreensível: quem mais tem capacidade de amar, mais tem
capacidade de ferir. A mão que afaga é aquela de quem ninguém se
protege, e quando agride, causa dores na alma, pois toca o ponto mais
profundo de nossas estruturas afetivas. Isso vale não apenas para a
família nuclear: pais e filhos, mas também para as relações de amizade e
parceria conjugal, por exemplo. Em mais de vinte anos de experiência pastoral observei que poucos
sofrimentos se comparam às dores próprias de relacionamentos afetivos
feridos pela maldade e crueldade consciente ou inconsciente. Os males
causados pelas pessoas que amamos e acreditamos que também nos amam são
quase insuperáveis. O sofrimento resultado das fatalidades são acolhidos
como vindos de forças cegas, aleatórias e inevitáveis. Mas a traição do
cônjuge, a opressão dos pais, a ingratidão dos filhos, a rixa entre
irmãos, a incompreensão do amigo, nos chegam dos lugares menos
esperados: justamente no ninho onde deveríamos estar protegidos se
esconde a peçonha letal.
Poucas são minhas conclusões, mas enxerguei pelo menos três aspectos
dessa infeliz realidade das dores do amar e ser amado. Primeiro, percebo
que a consciência da mágoa e do ressentimento nos chega inesperada, de
súbito, como que vindo pronta, completa, de algum lugar. Mas quando
chega nos permite enxergar uma longa história de conflitos, mal
entendidos, agressões veladas, palavras e comentários infelizes, atos e
atitudes danosos, que foram minando a alegria da convivência, criando
ambientes de estranhamento e tensões, e promovendo distâncias abissais.
Quando nos percebemos longe das pessoas que amamos é que nos damos
conta dos passos necessários para que a trilha do ressentimento fosse
percorrida: um passo de cada vez, muitos deles pequenos, que na ocasião
foram considerados irrelevantes, mas somados explicam as feridas
profundas dos corações. Outro aspecto das dores do amar e ser amado está no paradoxo das
razões de cada uma das partes.
Acostumados a pensar em termos da lógica
cartesiana: 1 + 1 = 2 e B vem depois de A e antes de C, nos esquecemos
que a vida não se encaixa nos padrões de causa e efeito do mundo das
ciências exatas. Pessoas não são máquinas, emoções e sentimentos não são
números, relacionamentos não são engrenagens. É ingenuidade acreditar
que as relações afetivas podem ser enquadradas na simplicidade dos
conceitos certo e errado, verdade e mentira, preto e branco. A vida é
zona cinzenta, pessoas podem estar certas e erradas ao mesmo tempo, cada
uma com sua razão, e a verdade de um pode ser a mentira do outro. Os
sábios ensinam que “todo ponto de vista é a vista de um ponto”, e
considerando que cada pessoa tem seu ponto, as cores de cada vista serão
sempre ou quase sempre diferentes. Isso me leva ao terceiro aspecto. Justamente porque as feridas dos corações resultam de uma longa
história, lida de maneiras diferentes pelas pessoas envolvidas, o
exercício de passar a limpo cada passo da jornada me parece inadequado
para a reconciliação. Voltar no tempo para identificar os momentos
cruciais da caminhada, o que é importante para um e para outro, fazer a
análise das razões de cada um, buscar acordo, pedir e outorgar perdão
ponto por ponto não me parece ser a melhor estratégia para a
reaproximação dos corações e cura das almas.
Estou ciente das propostas terapêuticas, especialmente aquelas que
sugerem a necessidade de re–significar a história e seus momentos
específicos: voltar nos eventos traumáticos e dar a eles novos sentidos.
Creio também na cura pela fala. Admito que a tomada de consciência e a
possibilidade de uma nova consciência produzem libertações, ou, no
mínimo, alívios, que de outra maneira dificilmente nos seriam possíveis.
Mas por outro lado posso testemunhar quantas vezes já assisti esse
filme, e o final não foi nada feliz. Minha conclusão é simples (espero
que não simplória): o que faz a diferença para a experiência do perdão
não é a qualidade do processo de fazer acordos a respeito dos fatos que
determinaram o distanciamento, mas a atitude dos corações que buscam a
reaproximação. Em outras palavras, uma coisa é olhar para o passado com a
cabeça, cada um buscando convencer o outro de sua razão, e bem
diferente é olhar para o outro com o coração amoroso, com o desejo
verdadeiro do abraço perdido, independentemente de quem tem ou deixa de
ter razão. Abraços criam espaço para acordos, mas a tentativa de
celebrar acordos nem sempre termina em abraços.
Essa foi a experiência entre José e seus irmãos. Depois de longos
anos de afastamento e uma triste história de competições explícitas,
preferências de pai e mãe, agressões, traições e abandonos, voltam a se
encontrar no Egito: a vítima em posição de poder contra seus agressores.
José está diante de um dilema: fazer justiça ou abraçar. Deseja
abraçar, mas não consegue deixar o passado para trás. Enquanto fala com
seus irmãos sai para chorar, e seu desespero é tal que todos no palácio
escutam seu pranto. Mas ao final se rende: primeiro abraça e depois
discute o passado. Essa é a ordem certa. Primeiro, porque os abraços
revelam a atitude dos corações, mais preocupados em se (re)aproximar do
que em fazer valer seus direitos e razões. Depois, porque, no colo do
abraço o passado perde força e as possibilidades de alegrias no futuro
da convivência restaurada esvaziam a importância das tristezas desse
passado funesto. Quando as pessoas decidem colocar suas mágoas sobre a mesa, devem
saber que manuseiam nitroglicerina pura. As palavras explodem com muita
facilidade, e podem causar mais destruição do que promover restauração.
Não são poucos os que se atrevem a resolver conflitos, e no processo
criam outros ainda maiores, aprofundam as feridas que tentavam curar, ou
mesmo ferem novamente o que estava cicatrizado. Tudo depende do
coração. O encontro é ao redor de pessoas ou de problemas? A intenção é a
reconciliação entre as pessoas ou a busca de soluções para os
problemas? Por exemplo, quando percebo que sua dívida para comigo
afastou você de mim, vou ao seu encontro em busca do pagamento da dívida
ou da reaproximação afetiva? Nem sempre as duas coisas são possíveis.
Infelizmente, minha experiência mostra que a maioria das pessoas prefere
o ressarcimento da dívida em detrimento do abraço, o que fatalmente
resulta em morte: as pessoas morrem umas para as outras e,
consequentemente, as relações morrem também. A razão é óbvia: dívidas de
amor são impagáveis, e somente o perdão abre os horizontes para o
futuro da comunhão. Ficar analisando o caderno onde as dívidas estão
anotadas e discutindo o que é justo e injusto, quem prejudicou quem e
quando, pode resultar em alguma reparação de justiça, mas isso é inútil –
dívidas de amor são impagáveis.
Mas o perdão tem o dia seguinte. Os que recebem perdão e abraços
cuidam para não mais ferir o outro. Ainda que desobrigados pelo perdão,
farão todo o possível para reparar os danos do caminho. Mas já não
buscam justiça. Buscam comunhão. Já não o fazem porque se sentem
culpados e querem se justificar para si mesmos ou para quem quer que
seja, mas porque se percebem amados e não têm outra alternativa senão
retribuir amando. As experiências de perdão que não resultam na busca do
que é justo desmerecem o perdão e esvaziam sua grandeza e seu poder de
curar. Perdoar é diferente de relevar. Perdoar é afirmar o amor sobre a
justiça, sem jamais sacrificar o que é justo. O perdão coloca as coisas
no lugar. E nos capacita a conviver com algumas coisas que jamais
voltarão ao lugar de onde não deveriam ter saído. Sem perdão não existe
amanhã.
Pr. Ed René Kivitz
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